Imprimir esta página

Calvino e a certeza da fé

Escrito por  João Calvino

38. IMPROCEDÊNCIA DO DOGMA ESCOLÁSTICO DE QUE A CERTEZA DE FÉ É UMA CONJETURA MORAL.

A dúvida de Tomé

Daqui se pode ajuizar quão pernicioso seja esse dogma escolástico de que não podemos estabelecer de outro modo quanto à graça de Deus para conosco do que por uma conjetura moral, segundo cada um não se reputa indigno dela. Certamente, se houvéssemos de julgar por nossas obras que afeto Deus nos tem, confesso que não o podemos compreender nem pela menor conjetura do mundo. Como, porém, deve a fé responder à simples e graciosa promessa, não se deixa nenhuma possibilidade de dúvidas. Ora, pergunto, de que confiança seremos armados, se raciocinarmos que Deus nos é propício com esta condição: desde que a pureza de nossa vida assim o mereça? Entretanto, uma vez que, para tratar destas coisas destinamos seu devido lugar, por ora não iremos mais longe, sobretudo vendo que nada pode haver mais contrário à fé do que a conjetura ou qualquer outro sentimento que tenha algo parecido com a dúvida ou incerteza.

E para isso torcem mui abusivamente o testemunho de Eclesiastes, que por vezes, têm nos lábios: "Ninguém sabe se, porventura, seja digno de ódio ou de amor" [Ec 9:1]. Ora, deixando de parte que esta passagem foi incorretamente traduzida na versão corrente, contudo, não pode ser desconhecido até mesmo ás próprias crianças o que Salomão tem em mente com palavras desta natureza, isto é, se alguém queira julgar do presente estado das coisas, as quais delas Deus persegue com ódio, as quais delas abraça em amor, em vão labora ele e se atormenta com nenhum proveito, uma vez que "tudo sobrevém igualmente ao justo e ao ímpio, ao que oferece sacrifícios e ao que não os oferece" [Ec 9.2]. Do quê se segue que Deus não atesta perpetuamente seu amor para com aqueles a quem tudo faz suceder prosperamente, nem manifesta sempre seu ódio para com aqueles a quem aflige.

E Salomão faz isso para comprovar a fatuidade do engenho humano, quando em coisas sumamente necessárias de se conhecer ele se vê dominado de tão grande obtusidade. Como havia escrito pouco antes [Ec 3.19], não se pode discernir em que a alma do homem difira da alma do animal, visto que parece morrer da mesma forma. Se alguém daí queira inferir que a convicção que temos acerca da imortalidade das almas se apóia em mera conjetura, porventura com razão não será tido por insano? Portanto, porventura são dotados de são juízo esses que, porque não se pode alcançar nenhuma conclusão da percepção sensória das coisas presentes, concluem que nenhuma certeza existe da graça de Deus?

Institutas edicao classicaCALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, cap. II, p. 63.

Ler 1791 vezes
Avalie este item
(0 votos)