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Raízes cristãs da luta contra a discriminação racial

Escrito por  André Biéler
escravidao

O que choca nossas mentes modernas é que os Direitos do Homem, que começaram dificilmente a ser levados em conta na época das grandes revoluções democráticas ocidentais, são ainda apenas privilégio reservado aos brancos. Índios e negros, especialmente, deles não participam.

É, também, a partir de uma vanguarda de protestantes corajosos que a luta contra o racismo, contra o tráfico dos negros e pela abolição da escravatura começará a travar-se desde o século XVI, não sem enormes, violentas e tenazes resistências.

Remontemos aos inícios da história. Pouco depois da descoberta do que se cria ser a Índia, em 1492, os habitantes desse velho mundo, que os europeus dizem novo e que se chamará América, os índios descobrem, por sua vez, indivíduos estranhos a seus olhos, conduzidos por um certo Cristóvão Colombo. Com seus companheiros, ele lhes leva uma civilização bárbara, a dos invasores belicosos e destruidores que, desde sua chegada, os maltratam cruelmente. Centenas de infelizes cativos são logo enviados para a Espanha, reduzidos ao estado de escravos.

Alguns anos mais tarde, os negros da África, brutalmente arrancados de sua família e de sua tribo por negreiros impiedosos, são amontoados, com menor precaução do que se toma com o gado, em sórdidas embarcações. São transportados para ilhas, que lhes são desconhecidas (Haiti, Cuba), sob condições tais que pouco mais da metade lá chegaram vivos. Os outros foram dizimados pela fome, enfermidades e tratamentos brutais. Assim começa a era da opressão dos indígenas da América e o tempo do tráfico dos negros que são reduzidos à escravidão.

A tradição da escravidão é um velho costume estabelecido no Ocidente já na Antiguidade. Esse destino era reservado aos vencidos em conflitos armados, que escapavam da exterminação. Um sursis lhes era concedido, por misericórdia e por interesse também, já que podiam, assim, prestar serviços a baixíssimo preço aos seus senhores vencedores.

No fim do século XV, alguns humanistas começaram a indignar-se contra a instituição dos servos e dos escravos no continente europeu. Mas o tráfico dos negros foi ainda por longo tempo praticado, notadamente pelos mulçumanos que constituíam a maior parte dos negreiros africanos. A Igreja, então, justificava a instituição da escravatura alegando o direito de propriedade (circunstância muito pouco evangélica) e sublinhando o fato, observado na prática, de que uma instituição legal, que exigisse dos proprietários de escravos o trato humano deles, era preferível ao abandono puro e simples das vítimas, sem proteção contra a crueldade de que é capaz o ser humano.

No espírito dos conquistadores espanhóis e portugueses, a sujeição ou o extermínio dos indígenas estava, portanto, na lógica antiga de toda conquista guerreira. A invasão armada de um país para conquistar suas riquezas exigia, como em qualquer outro campo de batalha, que todo oponente fosse morto ou feito cativo. Os indígenas deviam, portanto, submeter-se às exigências dos conquistadores vitoriosos ou ser exterminados.

Mas como os índios da América não estavam dispostos a se renderem e resistiam bravamente aos invasores, estes julgavam, pois, muito natural, exterminá-los. Tal solução, porém, não os tornava disponíveis para servir de mão-de-obra nas minas e no cultivo. Os colonos acharam, por isso, muito natural também apelar para a mão-de-obra estrangeira importada da África, ainda mais lucrativa porque escrava. Ademais, o tráfico dos negros era encorajado pelos soberanos dos países colonizadores, porque era altamente remunerador. A Coroa espanhola, por exemplo, reservava-se a venda das licenças de importação de negros e taxava cada transporte de escravos. Extremamente lucrativo, também, era o famoso tráfico triangular dos negreiros. Utilizando o mesmo navio para ir e vir, levavam da Europa pacotilha que trocavam com os africanos por escravos. A seguir, transportavam estes para a América, onde as embarcações eram carregadas, na volta, com os tesouros das minas e as mercadorias das colônias compradas a preço vil.

O tráfico dos negros prosseguiu, dessa forma, durante três séculos "realizando a mais extraordinária migração forçada da História: milhões de homens foram, assim, transplantados de um continente para outro, esvaziando a África, povoando a América"1.

Quanto aos índios, eles eram cerca de trinta milhões antes da chegada de Cristóvão Colombo. Não restavam mais que treze milhões deles um século mais tarde e apenas doze milhões no fim do século XVIII.

Apesar deste tráfico, a mão-de-obra estava sempre em falta na América, porque os negros eram pouco prolíferos visto que, somente ou quase, os homens eram importados. Para preencher essa deficiência, a Espanha enviou para suas colônias a escória de suas cidades, vagabundos e criminosos.2

Compreende-se por que a luta contra a escravidão partiu de regiões povoadas por refugiados por motivo religioso, fiéis a sua fé cristã, antes que das colônias fortemente interessadas nesse tráfico e cuja população não tinha as mesmas motivações religiosas. Por isso, desde suas origens, a luta antiescravagista será fortemente combatida nos Estados Unidos pelos representantes dos Estados do Sul e, como por toda a parte, aliás, pelos promotores do grande capitalismo atlântico nascente, especialmente sob a forma das poderosas companhias coloniais corporativas.

Importa assinalar, aqui, uma primeira tentativa de luta contra a escravidão dos índios da América, que foi infelizmente mal-sucedida. A escravidão começara, portanto, já com o próprio Cristóvão Colombo. Não enviara ele, em 1494, para a Espanha cerca de quinhentos prisioneiros indígenas, destinados a serem vendidos como escravos em Sevilha? Sem demora, um padre dominicano, Bartolomeu de Las Casas, tomou corajosamente a defesa desses indígenas, denunciando a crueldade dos espanhóis para com eles. Mas, para fazer face às necessidades crescentes de mão-de-obra, ele cometeu a imprudência de sugerir, em 1517, que cada colono do Haiti tivesse o direito de importar da África uma dúzia de escravos negros. A grande vaga da escravidão africana, arrebentando sobre a América, ia ampliar-se.

O princípio de escravidão, pois, fora claramente denunciado pelo Cristianismo reformado desde suas origens. E uma tentativa de estabelecer novas relações com os indígenas dos países em via de colonização fora mesmo empreendida por calvinistas desde a metade do século XVI. Procedentes de Genebra, protestantes tinham a intenção de fundar no Brasil uma colônia de novo tipo. Desejosos de respeitar plenamente as pessoas e os direitos indígenas, queriam criar uma verdadeira comunidade evangélica naquele país.

Em março de 1557, um contingente de refugiados franceses, acompanhados de dois pastores huguenotes, foi enviado pelo reformador João Calvino para junto do cavaleiro de Villegagnon. Este desembarcara, em 1555, na emborcadura do rio de Janeiro (Rio de Janeiro). Desejava estabelecer lá uma colônia francesa que professasse a fé reformada. Naquela comunidade nova, todos os membros deviam viver em pé de igualdade, no espírito do Evangelho. Um deles, Jean de Léry, teólogo e artesão sapateiro, escreverá mais tarde a história de uma viagem feita às terras do Brasil, onde ele narra essa aventura que foi muito mal-sucedida, em razão do caráter versátil de Villegagnon.3

Contrariamente às idéias difundidas pelos colonizadores da época, Jean de Léry proclama que os indígenas colonizados são não apenas pessoas respeitáveis, mas que possuem qualidades de que muito frequentemente carecem os cristãos, mesmo aqueles que se reputam mais civilizados. "Ainda que eu tenha sempre amado e ame ainda minha pátria", escreve, "todavia, vendo não só a pouca ou quase nenhuma lealdade e fidelidade que nela existem, mas, o que é pior, a deslealdade com que nela se tratam mutuamente as pessoas, lamento muitas vezes que não esteja entre os selvagens, cuja sinceridade conheci mais que a de muitos daqui, os quais, para sua condenação, levam o nome de cristão".4 E como as novas descobertas geraram, nesse século de ardor colonizador, violentas paixões pelo ganho e especulações financeiras pouco escrupulosas, o autor sublinha que o nível moral dos colonizadores não poderia servir de modelo para os colonizados. "Nesta matéria", escreve, "considerem detidamente o que fazem nossos ricos agiotas, que sugam o sangue e o tutano, e por conseguinte comem em vida tantas viúvas, órfãos e outras pobres pessoas, cujas gargantas era preferível cortar de um só golpe a fazê-los languir dessa forma"5. Identificava-se, nessas observações, a mesma linguagem de Calvino quando equipara a escravidão ao assassinato. "Subtrair a liberdade a um homem", escrevia este reformador, "equivale a matá-lo". "Privar um homem de tão grande bem, é como que cortar-lhe a garganta" (Comentário Gênesis, cap. 12, v. 5). Calvino não partilhava absolutamente das idéias de seu tempo sobre a colonização. Se bem que a pressão da Igreja antiga sobre a sociedade ocidental tivesse levado à proscrição, desde o século X, do comércio dos escravos (conquanto muito remunerativo), a sede de poder e dinheiro desenvolvida na Renascença, robustecida pela descoberta dos mundos novos, levara a opinião a se acomodar a novas práticas de escravisação dos colonizados. Recordemos que, de acordo com o pensamento de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino, se pensava que, legislando-se sobre a proteção dos escravos, se protegiam estes contra a crueldade de seus senhores. Calvino não compartilhava dessa opinião. Em diversos comentários e sermões, afirmava que a escravidão era absolutamente contrária à ordem natural correspondente aos desígnios de Deus. Demonstrava que essa ordem fora e continuava sendo degenerada pelo pecado dos homens. "Ainda que os primeiros que haviam sido escravizados", escrevia, "tenham sido oprimidos por direito de guerra ou porque a pobreza os haja constrangido, é absolutamente certo que a ordem da natureza se corrompera violentamente". "E, se bem que seja útil que uns superintendam outros, conviria mais, todavia, preservar uma condição de igualdade entre irmãos"6. O reformador insiste, também, sobre o fato de que a libertação dos escravos é muito frequentemente de tal sorte explorada que os libertos tombam para a situação pior que a anterior. Por isso, ajunta, o Antigo Testamento prescreve que o escravo emancipado deve receber, no momento da libertação, toda a ajuda necessária para a assunção de sua plena liberdade. E o ensinamento do Novo Testamento e de São Paulo em particular, prossegue, confirma o do Antigo. Ele nos esclarece que a escravidão, "contrária a toda ordem natural", é, com muito maior razão, oposta à ética cristã. Mas, acrescenta ainda o reformador, a ordem da sociedade não pode ser mudada, enquanto os próprios crentes não se ajustarem à Palavra de Deus de forma muito estrita, para deslanchar as transformações necessárias da ordem política. Caso contrário, esta permanece "a ordem de Deus perturbada"7.

Vê-se, pois, que o pensamento original da Reforma é completamente oposto aos costumes e hábitos de seu século e dos séculos seguintes, acerca de tudo o que se refere à escravidão e à sorte dos indígenas colonizados.

Ora, esse compromisso de lutar contra a escravidão, afirmado pela Reforma, foi retomado mais tarde pelos quakers. Estão entre os cristãos, e especialmente entre os protestantes, aqueles que melhor compreenderam a doutrina da ética dos Evangelhos nesse assunto.

Conta-se, explicam J. H. Louis e J. O.Héron8, que, quando da sua chegada na América, instigados pelo fundador de sua comunidade, George Fox, e estimulados por William Penn, vários desses Amigos, apenas desembarcados, se puseram em contato com os índios. Uma tradição pretende que estes lhes hajam declarado: "Sois nossos irmãos e vivemos convosco fraternalmente. Marcharemos juntos por longo caminho. O caminho será comum. Não se achará cepa alguma que possa ferir o pé".

Assim principiava, com a fraternidade dos colonos entre si e a amizade dos índios, a aventura da "Santa Experiência" dos quakers naquela Pensilvânia, cuja importância política resumidamente se evocou mais acima e a originalidade de sua constituição. Quando a nova capital, Filadélfia, começa a erguer-se à margens do Delaware, na região precisamente onde os chefes indígenas realizavam suas assembléias, Penn concluiu com eles, em 1683, o Grande Tratado de Shackamaxon. "Se os cristãos, diz o texto constante de tradição posterior, percebem que um perigo ameaça os cristãos, eles correm como amigos para avisar os interessados. Se um filho de Onas (pluma, tradução indígena de Pen, em inglês) ofende um Pele-Vermelha, ou um Pele-Vermelha ofende um filho de Onas, o ofendido não tratará de vingar-se, mas queixar-se-á aos chefes e a Onas para que a justiça seja feita por doze homens probos e a ofensa enterrada num poço sem fundo..."9

É também conhecida, relatam J. H. Louis e J. O. Héron, a carta que os índios endereçaram a Guilherme d'Orange, em 1701, para defender a causa de William Penn, convocado à Inglaterra onde estava ameaçado de prisão. "Nós, reis e chefes das antigas nações indígenas...", escreveu-se, "estamos sabendo que William Penn, nosso amigo e irmão bom e fraterno, deve, para nosso grande pesar e para a infelicidade de todos os indígenas da região, viajar para a Inglaterra, para se encontrar com o grande rei e chefes do governo de nossas terras. Urge, no mínimo, reconhecermos que ele foi sempre não apenas justo, mas também extremamente bom para conosco e para com nossos antigos reis e chefes..."

"Além disso, ele nos comprou nossas terras, o que governo nenhum antes dele fizera. Esperamos e desejamos que o grande rei dos ingleses acolha, com benevolência e bondade, a ele e seus filhos, dando-lhes permissão de voltar para governar para sempre nossa região... Sabemos que seremos bem-tratados e encorajados a continuar a viver no meio dos cristãos, na conformidade do acordo que ele solenemente concluiu conosco, para benefício nosso e de nossa posteridade, em vigência enquanto sol e lua durarem..." Podemos também falar "de seu sábio conselho e de suas instruções... a respeito da vida sóbria e virtuosa, o melhor meio de agradar ao grande Deus e de ser feliz, aqui e para sempre". Este documento foi "entregue ao governador, na presença de muitas testemunhas, cujos nomes seguem, dentre os quais muitos assinaram com uma cruz..."10 Tal relacionamento entre brancos e índios na América foram excepcionais. Valeria a pena deter-se aqui.

O espírito que prevalecia entre os quakers e os índios foi o mesmo que aquele que marcará as relações desses Amigos com os escravos negros. Entre essa vanguarda do protestantismo desenvolveu-se muito cedo uma mentalidade antiescravista. "Que vossa Luz ilumine os índios, os negros e os brancos", escrevera já George Fox para as comunidades americanas. Na Inglaterra, ele pregava os mesmos princípios anti-racistas. Estes chocavam a opinião pública e suscitavam veementes críticas. George Fox não se constrangia, porém, em declarar que possuir escravos era contrário à fé cristã. Contrapunha-se a costumes que eram, todavia, ainda aceitos, mesmo nas comunidades quakers na América, notadamente nos Estados do Sul, onde se localizavam riquíssimos agricultores pouco dispostos a concordar em prejudicar seus interesses.

Em 1712, um quaker pediu ao governo inglês a abolição legal da escravidão na Pensilvânia. Sem ir tão longe, a Câmara dos Representantes decidiu que um imposto de vinte libras seria pago na importação de cada escravo. Imposto proibitivo, de fato. Mas a rainha da Inglaterra se opôs à entrada em vigor dessa lei.

Em 1758, a assembléia anual dos quakers reexaminou o problema e decidiu condenar radicalmente a escravatura. Dita condenação alastrou-se nos meios protestantes, que se levantavam, sempre em maior número, contra os maus-tratos para com os negros. Mas, a escravatura permanecia, apesar de tudo, prática admitida, mormemente nos famosos Estados do Sul até a Guerra da Secessão, e mais tempo ainda nas colônias espanholas e portuguesas.

Como frequentemente ocorre, os pioneiros da vanguarda, depreciados pela opinião convencional dos oportunistas desprovidos de coragem e privados de imaginação, acabam por ganhar a aprovação de crescente número de seus concidadãos. A data de 1852 permanecerá memorável na história do abolicionismo. Dando prosseguimento a mais de um século de esforços de valentes minorias, a senhora Peecher Stowe publicou, naquele ano, A Cabana do Pai Tomás. Puritana, filha e mulher de pastor, esta autora descreveu com emoção a existência dolorosa de um negro corajoso, encarnando as mais belas virtudes evangélicas. O incrível sucesso dessa obra suscitou muito naturalmente a cólera daquelas personalidades altamente posicionadas, que sentiam seus interesses escravistas ameaçados. Mas a intrépida autora estava habituada a esse tipo de hostilidade. O pastor Peecher, seu pai, era um dos condutores do Underground Railway, organização clandestina americana que se empenhava por colocar em segurança os escravos fugitivos provenientes dos Estados escravistas. Lincoln, conta M. Lengellé, elogiou a coragem "dessa mulherzinha, dizia ele, que dera início a uma grande guerra"11. Essa guerra, o próprio Lincoln vencê-la-á contra os sulistas, alguns anos mais tarde.

Na Inglaterra, há há muito tempo, os crentes batiam-se contra os poderosos beneficiários dos interesses do comércio dos escravos, fortemente representados nos meios governamentais. Em 1784, Lorde William Wilberforce conseguiria entrar para a Câmara dos Comuns. Desde então, ele lutou, no seio do governo, em prol da abolição da escravatura e arrastou consigo o jovem amigo William Pitt. Combatendo infatigavelmente por essa causa, a despeito de longo insucesso, foi só em 1807 que obteve a abolição do tráfico negreiro. Com Canning, as Comunas votaram "a liberdade civil e religiosa dos dois mundos", colocando assim a Grã-Bretanha na vanguarda dos movimentos antiescravistas.

Na França, a abertura progressiva dos protestantes ao antiescravismo juntava-se às preocupações da corrente humanista do século das Luzes. Voltaire, em Diálogos entre um Selvagem e um Bacharel, evocava, como Diderot, as qualidades do "bom selvagem" cujo bom senso o fazia prevalescer sobre o dos sábios e dos colonialistas apoiados pela realeza. E os filósofos exaltavam a experiência idílica de William Penn, uma utopia cristã a seus olhos, mas que se confundia com seu sonho de uma nova sociedade.

Jean-Jacques Rousseau denunciava a escravatura na Nova Heloísa, onde Saint-Preux expressa sua indignação. "Vendo a quarta parte de meus semelhantes transformados em animais para o serviço dos outros", dizia, "envergonhei-me de ser homem". E no Contrato Social, um capítulo consagrado a essa calamidade termina com esse julgamento radical: "As palavras escravidão e direito são contraditórias: excluem-se mutuamente".

De sua parte, o ministro protestante de Luís XVI, Necker, desejava muito que a situação dos escravos melhorasse. Mas argumentava como todos economistas de todos os tempos, que reputam as leis econômicas como uma fatalidade inexorável: o país, que renunciasse às vantagens econômicas proporcionadas pela escravidão, dizia, perderia incontinenti sua força política, consequentemente sua independência. Mas, na qualidade de cristão reformado, consciente das responsabilidades confiadas por Deus ao Estado, percebia, assim mesmo, que uma legislação universalmente aceita poderia modificar essa pretendida fatalidade econômica. "Seria porventura um progresso quimérico", questiona ele, "esse pacto geral pelo qual todas as nações renunciassem de comum acordo ao comércio negreiro? Posicionar-se-iam, umas em relação às outras, nas mesmas proporções que atualmente existem, porque é unicamente a condição relativa que interessa para o cálculo das potências". Está-se na época em que Sismondi e Legrand, esses dois protestantes profetas a seu modo, tentavam fazer com que as autoridades percebessem a necessidade de uma legislação internacional (falar-se-á disso mais adiante). Necessitou-se de dois séculos de duros embates, para que essa compreensão das necessidades sociais fosse compartilhada por maior número de pessoas. Foi retardada por todos aqueles que, como Necker, lhe vislumbram a necessidade, mas preferem manter a maior prudência, enquanto nutrem a esperança de que chegue, enfim, o tempo em que poderão realizar "essas felizes revoluções". Assim, na aberturados Estados Gerais em Versalhes, a 5 de maio de 1789, Necker deseja ver "abrandar-se uma escravatura considerada necessária". Ora, uma semana depois, o protestante metodista William Wiberforce, esse ardente defensor inglês da causa dos negros que se acaba de citar, intervém na Câmara britânica para levantar-se contra o tráfico. Também ele pleiteia, citando Necker, uma ação combinada dos Estados. Decorridos vinte anos de luta, ele verá as Câmaras britânicas declararem a extinção do tráfico em 1807. Da parte dos revolucionários franceses (moderados), encontram-se também antiescravistas, notadamente protestantes exilados de volta a Paris, ou genebrinos refugiados por causa de suas idéias avançadas, como Etienne Clavier, Etienne Dumont, Du Roveray, membros da Sociedade dos Negros fundada em 1788 segundo o modelo da sociedade inglesa. Pertencem ao "escritório" de Mirabeau. Suspeitos, eles foram denunciados como estrangeiros a soldo da Inglaterra (velho procedimento das autoridades no poder para desacreditar e eliminar os que as importunavam), porque os meios econômicos que auferem proveitos da escravatura são poderosos e não pretendem deixar-se despojar de seus privilégios. A filha de Necker, Germaine de Staël, abraça a causa de Wilberforce e prefacia uma de suas obras, que a própria filha, Albertina, traduziu. Aí faz, a respeito dos economistas, observações de pertinência política que em nada perderam sua atualidade. Alfred Berchtold relata seus propósitos da seguinte forma: "Quando se propõe suprimir um abuso qualquer... logo aqueles que usufruem desse abuso não deixam de discriminar todos os benefícios de ordem social que dele decorrem. É a coisa mais importante, dizem, enquanto nada mais é que a chave de seus próprios interesses". Em 1814, ela lança um Apelo aos Soberanos Reunidos em Paris para Obter a Abolição do Comércio dos Negros, baseando-se nos sete anos de experiência abolicionista britânica para sublinhar-lhe os benefícios12.

Entre os precursores da abolição da escravatura, cumpre citar novamente o economista protestante Simonde de Sismondi. Influenciado por seus amigos de Coppet, Necker, Madame de Staël e Benjamin Constant principalmente, vai mais além que eles na análise dos fatos que condicionam a escravidão. Chega até a condenar, A. Berchtold faz notar ainda, qualquer empreendimento colonial, denunciando o colonialismo no momento em que Napoleão tenta conquistar o Egito, depois de 1798. Ainda que preocupado com "o aviltamento da dignidade humana" em todas as latitudes, ele não nega o interesse que têm nas nações, como a França, de se enriquecerem nas costas dos indígenas colonizados. Mas protesta contra o direito que reivindicam os franceses, ainda depois de 1814, de "corromper de novo os costumes dos negros" e de "retornar aos crimes interrompidos durante sete anos com a abolição do tratado com a Inglaterra"13. Eles se propõem, diz, a tratar novamente "homens, seus semelhantes e seus irmãos, como Deus não permite de forma alguma tratar até mesmo os animais"14. Crê-se ouvir um terceiromundista contemporâneo quando Sismandi escreve indignado: "O preço da jornada do índio é quase cinco vezes menor que o preço da jornada do negro escravo"15. Ora, "a sorte de todos os povos está ligada doravante. E a prosperidade ou a ruína dos Moluscos faz sentir sua influência até o cume dos Alpes suíços"16.

Em 1833, prossegue A. Berchtold, ano da morte de Wilberforce, Sismond publica uma brochura intitulada Da Condição na qual Convém Colocar os Negros ao Libertá-los. Preocupa-se não apenas com a libertação dos escravos, mas igualmente com a situação deles após a emancipação. Essa situação igualava-se àquela, terrível, do novo proletariado industrial. É preciso, dizia Sismondi, que o negro liberto seja vinculado a uma terra mediante novos elos, a fim de que possa redescobrir no seu trabalho e no seu novo enraizamento o prazer e a dignidade do homem verdadeiramente livre. É também admoestação de intensa atualidade, que faz Sismondi contra o comércio mundial desordenado dos produtos agrícolas. Ressalta o valor cultural humano da vinculação de uma população à sua terra, contrariamente às pretensões de um comércio internacional dos produtos agrícolas, que despersonaliza tanto produtores quanto consumidores. Assim, se os antigos escravos não são mais explorados para que vivam as metrópoles, "a agricultura trocará de objetivo: em lugar de destinar a grande massa de seus produtos para uma exportação longínqua, de se submeter integralmente à grande e muitas vezes funesta oportunidade do comércio, ela começará por aquilo que deveria, sempre, ser sua primeira destinação: os produtos do país nascerão para os habitantes do país; as necessidades dos pobres serão satisfeitas antes que se pense nas fantasias do rico"17. Sismondi repete em várias oportunidades que sonha ver o Haiti exportar menos açúcar e comer melhor. Percebe que o problema da escravidão suscita também o da distribuição equitativa e inteligente das riquezas produtivas.

Resumindo, vê-se que, na França, a ação dos filósofos e dos protestantes mencionados foi, finalmente, eficaz. Ela levou a Convenção a adotar um decreto sobre a escravidão (4 de fevereiro de 1794). Mirabeau opusera-se aos interesses dos escravistas, defendidos por Malouet, que se devotava a mostrar as grandes vantagens que as colônias e a França podiam auferir da exploração dos negros. Infelizmente, a revolta sangrenta dos indígenas no Haiti teve deplorável efeito sobre a opinião pública francesa e tornou o decreto inoperante, enquanto Bonaparte restabelecia oficialmente a escravidão em 1802. Foi, portanto, a Inglaterra que, no Congresso de Viena (Tratado de 1815), impôs às nações européias a supressão da escravatura, promulgada em 1817 na França, mas definitivamente aplicada ao tempo da Revolução de 1848.

Para o conjunto dos Estados Unidos, a propaganda antiescravista, de que se falou, tornou-se progressivamente vitoriosa nas populações de origem protestante, mas foi contestada cada vez mais duramente pelos senhores de escravos, fosse qual fosse a confissão religiosa. Esse antagonismo foi uma das causas da guerra de Secessão. Quando o abolicionista Lincoln foi eleito presidente da União, os Estados do Sul promoveram a separação (fevereiro de 1861). Foram necessários quatro anos de guerra para reconduzi-los à razão. Proclamada pelo governo federal em 1º de fevereiro de 1893, a emancipação dos negros dos Estados Unidos só se consumou depois da vitória dos Nortistas.

Os preconceitos contra os negros não cessaram então. Acentuaram-se sensivelmente com as discriminações sociais introduzidas pelo desenvolvimento industrial, que despejava a maioria dos negros no proletariado, e isso até os dias de hoje.

A despeito dos esforços das Igrejas de todas as confissões em prol da reconciliação das raças, o recente martírio do pastor Martin Luther King e de tantos outros crentes corajosos demonstra claramente quão vivo está o racismo. É sempre verdadeira a observação de Tocqueville, que conhecia muito bem a América e que dizia: "a desigualdade acirra-se pelo instinto nos corações, à proporção que esmaece nas leis"18.

Convém notar que a ética reformada anti-racista foi também traída por protestantes, na África do Sul especialmente. Esse fato atesta, como já se observou, que nenhuma comunidade cristã se acha ao abrigo de trágicas perversões espirituais e éticas. Mas, graças a numerosos e corajosos cristãos, negros e também uma minoria branca, que jamais desanimaram, a luta anti-racista, lá também, alcançou pouco a pouco o sucesso. A paz racial foi restabelecida, numa calma relativa, mas frágil, que honra aqueles que a respeitam, tanto negros quanto brancos.

Notas

1. R. Sédillot, Histories des colonisations, Paris, 1958, p. 342.

2. Ibid. p. 343.

3. Jean de Léry, Le voyage au Brésil, Paris, 1927. Ver também Olivier Reverdin, Quatorze calvinistes chez les Tupinambous, Genebra, 1957.

4. J. de Léry, op. cit., p. 13.

5. Ibid. p. 208.

6. J. Calvino, Commentaire sur les cinq livres de Moïse, Genèse, ch. 12, v. 5.

7. Ibid.

8. Jeanne-H. Louis et Jean O. Héron, William Penn et les Quakers: ils inventèrent le Nouveau Monde, Paris, s.d. p. 47.

9. Ibid. p. 58.

10. Ibid. p. 118.

11. M. Lengellé, L'esclavage, Paris, 1955, p. 87.

12. Cf. Alfred Berchtold, Sismond Genevois et européen, Genebra, 1991, p. 51 e seguintes.

13. A. Berchtold, op. cit., p. 74.

14. Ibid.

15. Ibid. p. 75.

16. Ibid. p. 76.

17. Ibid. p. 79.

18. M. Legenllé, op. cit., p. 81.

A força oculta dos protestantesAndré Biéler, A força oculta dos protestantes, Editora Cultura Cristã, págs. 97 a 108.

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