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Lutero e a eucaristia

Escrito por  Justo Gonzalez
Eucaristia

Foi na questão da eucaristia, entretanto, que Lutero se achou envolvido nas controvérsias mais amargas e prolongadas, não somente com católico-romanos, mas também com os reformadores mais extremados, e mesmo com os reformadores suíços relativamente moderados.

As principais objeções de Lutero à doutrina e prática romanas da Ceia do Senhor podem ser encontradas em O Cativeiro Babilônico da Igreja, onde ele reivindica que este sacramento é mantido pela igreja em um tríplice cativeiro. O primeiro é a privação dos leigos da participação no cálice; o segundo é a doutrina da transubstanciação, que torna o sacramento cativo da Metafísica Aristotélica; o terceiro é a doutrina que a missa é "uma boa obra e um sacrifício". Posteriormente, Lutero rejeitou outras práticas católico-romanas, tal como o proferir de missas particulares. Mas em geral, sua oposição ao Catolicismo Romano nesse particular se definira claramente por volta do período em que escreveu este tratado. Como essas perspectivas foram condenadas pela igreja romana, e como outras questões se tornaram mais importantes, este aspecto particular da polêmica recolhe-se ao pano de fundo, embora Lutero continuasse sustentando os pontos de vista expressos em O Cativeiro Babilônico da Igreja.

Uma controvérsia mais extensa e complexa se desenvolveu quando alguns na esfera protestante começaram a sugerir que Lutero não tinha ido longe o suficiente, e que a presença corporal de Cristo no sacramento devia ser negada. Novamente, este não é o lugar para narrar essa controvérsia. Posteriormente, ao discutir os reformadores suíços e os anabatistas, seus pontos de vista serão vistos em maiores detalhes. É suficiente mencionar aqui que, em geral, os oponentes de Lutero reivindicaram que a presença de Cristo na Ceia do Senhor era "simbólica" ou "espiritual" e não corporal, e que o ato de comunhão era essencialmente um ato de recordação da paixão do Senhor.

Lutero não poderia aceitar estes pontos de vista. Suas razões para isso não foram que tais pontos de vista fossem muito radicais - ele demonstrara sua inclinação para ser radical quando a situação o exigia - mas que eles contrariavam o que Lutero entendeu ser o sentido claro da Escritura. O texto da Bíblia dizia claramente e sem ambigüidade: "Isto é o meu corpo". Portanto, era exatamente isso que Cristo queria dizer. Nesse aspecto, Lutero estava convencido de que os católico-romanos estavam mais próximos do sentido verdadeiro da Escritura do que seus oponentes protestantes. Portanto, ele declarou que antes comeria o corpo de Cristo com os papistas do que o faria com os entusiastas.

Duas objeções básicas foram feitas por seus oponentes; mas estas foram duas objeções que Lutero não podia aceitar, pois elas contrariavam seu entendimento básico da mensagem bíblica.

A primeira objeção era que o corpo de Cristo estava no céu, à mão direita de Deus, e não poderia, portanto, estar no altar. A isto Lutero respondeu que o corpo de Cristo não estava no céu, como um passarinho em seu ninho. A "mão direita de Deus" está em todo lugar e, portanto, o corpo de Cristo está presente em todo lugar - em outras palavras, ele é onipresente. Isso está muito intimamente relacionado com o entendimento de Lutero acerca da encarnação. Sua doutrina das duas naturezas tende a ser unificadora e não divisora, com uma forte ênfase sobre o communicatio idiomatum. Por meio da encarnação, o corpo de Cristo não deixou de ser um corpo físico. Portanto, foi dotado com os predicados da natureza divina. Dessa forma, o corpo de Cristo tem o poder de estar em todo lugar ao mesmo tempo. Mas neste caso, como no caso mais geral da revelação de Deus, todo lugar significaria nenhum lugar a não ser que Deus tivesse escolhido um local particular e dito "Isto é o meu corpo". O que nós temos aqui é uma situação paralela àquela da teologia da glória e da cruz. O teólogo da glória, buscando o Deus absoluto, aquele que está presente em todas as obras da criação, não encontra Deus. O teólogo da cruz busca e encontra Deus como escondido no sacramento do altar.

A segunda objeção tem a ver com o relacionamento entre o físico e o espiritual. Em resumo, essa objeção era a seguinte: fé é um assunto espiritual; o espírito não tem nada a ver com a carne; portanto, a presença corporal de Cristo não teria nada a ver com a fé. Lutero viu claramente que este era o tipo de pensamento que distanciara muitos dos oponentes da idéia da presença corpórea. E ele também viu que isso contradizia seu entendimento de "carne" e "espírito", como estes termos são usados no Novo Testamento. O oposto de espírito não é corpo, mas carne, e isto não é nosso aspecto físico, mas nossa auto-confiança e nossa rebeldia. O espiritual vem a nós no físico. Ele vem a nós no corpo de Cristo pendurado na cruz. E vem também no corpo de Cristo presente nos elementos.

Quando perguntado como a presença corpórea ocorria, Lutero simplesmente respondia que ele não sabia e que não cabia a ele perguntar. Ele rejeitou a transubstanciação, primeiramente, porque ela tornava o sacramento um escravo de Aristóteles, e segundo, porque ela negava a permanência do pão e do vinho. Seu próprio ensino era que o pão e o vinho, embora permanecessem como tais, também se tornavam veículos em que o corpo e o sangue de Cristo estavam presentes. Teólogos posteriores chamavam esta perspectiva de "consubstanciação", para indicar que as substâncias dos elementos permaneciam e que o corpo e sangue eram acrescentados a elas. O corpo de Cristo está no pão; o pão ainda é pão; o resto é um mistério e é melhor deixá-lo como tal.

Como veremos mais tarde, esses eram pontos de vista que outros reformadores não podiam aceitar e que, portanto ,se tornaram um dos pontos principais de contenda, primeiro entre Lutero e os reformadores suíços e, mais tarde, entre as confissões Luterana e Reformada.


Uma história do pensamento cristão(GONZALEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. vol. 3. pp. 65-68)

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