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São João Crisóstomo e o batismo pelos mortos

Escrito por  João Crisóstomo
João Crisóstomo

São João Crisóstomo (347 – 407) viveu a maior parte da sua vida no século IV e estava, portanto, ainda muito perto das fontes originais do cristianismo, e conhecia de maneira muito próxima e confiável o que os apóstolos haviam ensinados aos seus seguidores. É muito interessante ver a maneira como ele aborda o texto de 1ª Coríntios 15:29, em que Paulo faz uma ironia sobre aqueles que se deixam batizar pelos mortos. Acompanhe:

QUADRAGÉSIMA HOMILIA

29. Se não fosse assim, que proveito teriam aqueles que se fazem batizar em favor dos mortos? Se os mortos realmente não ressuscitam, por que se fazem batizar em favor deles?

O Apóstolo toca em outro ponto importante, às vezes sobre as obras de Deus, outras vezes, porém, sobre o que eles próprios praticam, comprovando seus dizeres. Não é pequeno argumento para defesa apresentar os contraditores por testemunhas do que se afirma, empregando aquilo mesmo que eles fazem. O que é, portanto, o que diz aqui? Ou quereis que primeiro explique como adulteram esta frase os infeccionados com a heresia de Marcião? Ora, sei que provocarei muito riso; tratarei, portanto, especialmente do assunto, a fim de melhor fugirdes desse contágio. De fato, se morre um deles ainda catecúmeno, escondem debaixo do leito do defunto um homem vivo, aproximam-se do morto e dirigem-se a ele perguntando se quer receber o batismo. Em seguida, como nada responde, o homem escondido, diz em vez dele, que quer ser batizado; e assim o batizam, em lugar do falecido, como se representassem uma peça teatral. Tanto pôde o diabo sobre almas tímidas. Depois, se acusados, alegam a palavra que afirma ter também o Apóstolo proferido: “Aqueles que se fazem batizar em favor dos mortos”. Viste que coisa ridícula? Acaso merece refutação? Não julgo oportuno, a não ser que se deva também discutir com os loucos o que proferem em delírio. Mas, a fim de que nenhum dos mais simples seja seduzido, é necessário submeter-nos a tal refutação. Se Paulo dizia isso, por que ameaçou Deus ao não batizado? Pois não é possível que doravante alguém fique sem batismo, quando se pensa dessa forma. Aliás, não seria culpa do defunto, mas dos vivos. Cristo disse a alguns: “Se não comerdes a carne do filho do Homem e não beberdes o seu sangue não tereis a vida em vós” ({joombible X.50.6:54}Jo 6,54{/joombible}). Foi aos vivos ou aos mortos? Dize-me, por favor. E ainda: “Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus” (ib. 3,5). Se, portanto, isso se realiza, sem necessidade do consentimento do receptor, nem do assentimento daquele que está vivo, o que impede que gentios e judeus se tornem fiéis, quando após a morte deles, realizem-no outros em seu favor? Mas para não trabalharmos em vão, rompendo mais teias de aranha, expliquemos o sentido dessa sentença. O que diz, portanto, Paulo? Em primeiro lugar a vós, iniciados nos mistérios, quero relembrar a palavra que na véspera vos mandam repetir os que vos iniciam, e então explicarei o que Paulo quis dizer. Desta forma ficará mais claro. De fato, no fim de tudo, acrescentamos o que agora diz Paulo. E quero proferi-lo abertamente, mas não ouso por causa dos que ainda não foram iniciados. Eles tornam nossa exposição mais difícil, porque nos obrigam ou a não dizer abertamente ou a enunciar-lhes coisas secretas. Todavia, direi, à medida do possível, de modo encoberto e velado. Com efeito, após o anúncio daquelas terríveis palavras místicas e das tremendas regras dos dogmas revelados do céu, acrescentamos também no fim, antes do batismo, a ordem de dizer: Creio na ressurreição dos mortos; e tendo tal fé, somos batizados. Depois de o confessarmos com os demais, então descemos à fonte das águas sagradas. Relembrando isso, dizia Paulo: “Se os mortos realmente não ressuscitam, por que te faz batizar em favor dos mortos?”, isso é, dos corpos. És batizado porque acreditas na ressurreição do corpo morto, ou melhor, que não continua morto. Tu, na verdade, confessas por palavras a ressurreição dos mortos; o sacerdote, porém, como que em determinada imagem, mostra na realidade aquilo em que acreditaste e confessaste por palavras. Ao acreditares sem o sinal, ele apresentar-te-á igualmente o sinal; quando fizeres o que te cabe fazer, então Deus igualmente conceder-te-á maior certeza. Como? Através da água. Ser batizado, pois, mergulhar, em seguida emergir é sinal da descida às regiões inferiores e subida de lá. Por isso Paulo também chama o batismo de sepulcro, nesses termos: “Pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte” ({joombible X.52.6:4}Rm 6,4{/joombible}). Desta maneira também torna crível a realidade futura, isto é, a ressurreição dos corpos. É bem mais apagar os pecados do que ressuscitar os corpos. E enunciando-o, dizia Cristo: “Com efeito,que é mais fácil dizer: Os teus pecados te são perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu catre e anda?” ({joombible X.47.9:5-6}Mt 9,5-6{/joombible}). Na verdade, aquilo é mais difícil. Uma vez que não acreditais no que não é evidente, e considerais difícil o que é mais fácil, isto é, a exibição de meu poder, não recusarei apresentar-vos também este indício: “Disse então ao paralítico: Levanta-te, toma o teu catre e vai para casa” (ib. 6).

E como, replicas, é difícil, se os reis e príncipes podem fazê-lo? Eles perdoam a adúlteros e homicidas. Estás brincando, ó homem, ao falar deste modo, pois somente Deus pode perdoar os pecados. Entretanto, os príncipes e os reis, apesar de perdoarem e absolverem a adúlteros homicidas, livram do suplício presente, mas não apagam nem expiam os pecados, mesmo se elevarem os anistiados à magistratura, ou até revestirem-nos de púrpura, e impuserem-lhes o diadema. De fato, houve reis que o fizeram, contudo não libertaram dos pecados. Somente Deus o faz. Ele o opera no banho da regeneração. A graça toca-lhes a própria alma, e de lá arranca o pecado pela raiz. Por conseguinte, é possível ser sórdida a alma daquele que foi perdoado pelo rei; a do batizado, não, porque está mais pura do que os raios do sol, tal como foi criada nos primórdios; ou antes, muito melhor do que então, porque frui da presença do Espírito que a inflama totalmente e aumenta-lhe a santidade. E como, ao refundires o ouro ou a prata, tu o purificas e renovas, assim também o Espírito Santo no batismo fundindo-a como num crisol, e consumindo os pecados, faz com que brilhe mais do que o ouro puríssimo. Daí, ainda, torna crível a ressurreição dos corpos. Na verdade, visto que o pecado introduziu a morte e a raiz secou, não se duvida mais da perda dos frutos. Por isso, tendo primeiro mencionado a remissão dos pecados, confessas também a ressurreição dos mortos, deduzindo esta daquela. Além disso, como não basta o nome de ressurreição para explanar tudo (pois muitos dos que ressuscitaram, morreram novamente, como os que ressurgiram no Antigo Testamento, ou Lázaro, ou os ressuscitados por ocasião da crucifixão), manda-se proferir: E na vida eterna, a fim de que ninguém pense mais em morte depois daquela ressurreição. Relembrando essas palavras, Paulo pergunta: “Que proveito teriam aqueles que se fazem batizar em favor dos mortos?” Com efeito, pode-se dizer, se não existe ressurreição, essas palavras são apenas peça teatral. Se não há ressurreição, de que modo os persuadiremos que acreditem naquilo que não damos? Assemelhar-se-ia a alguém que ordenasse que se emitisse um recibo para um ou outro credor, mas de forma alguma entregasse o que foi escrito e depois que o recibo tiver sido assinado, exigir o que nele estiver escrito. O que enfim fará o que assinou, porque se fez responsável e não recebeu aquilo que assegurou ter recebido? O mesmo se diga dos que são batizados. O que farão, perguntas, os batizados que subscreveram a existência da ressurreição dos corpos, todavia não a receberão, mas serão enganados? Haveria necessidade absoluta dessa confissão, se os fatos não se seguissem?

Comentário às Cartas de São Paulo/2São João Crisóstomo, Comentário às Cartas de São Paulo/2, São Paulo: Paulus, 2010, pp. 577-581.

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