O que acontece conosco após a morte? Há muita discussão sobre este assunto em meio cristão, onde tradicionalmente se acredita que a alma se mantém consciente até a ressurreição. Por outro lado, alguns têm questionado esta crença, argumentando através de vários textos que relatam que a alma dorme, que há na verdade um estado de inconsciência, até mesmo dizendo que a alma deixa de existir entre a morte e a ressurreição. Esta última doutrina é conhecida em meios teológicos como aniquilacionismo.
Curiosamente alguns textos bíblicos contradizem esta noção de aniquilamento, entre os mais notáveis está o texto de Lucas 23:43. Ali encontramos o diálogo entre o ladrão na cruz e o Senhor Jesus Cristo. Rechaçando as palavras zombeteiras de seu colega, o ladrão pede para Cristo que se lembre dele em seu reino. A resposta de Jesus é enfática:
Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. - Lucas 23:43
A resposta não foi que o ladrão seria ressuscitado no mesmo dia. A resposta não foi que o ladrão estaria com Cristo em seu reino no futuro. A resposta foi que eles estariam naquele mesmo dia, no paraíso, o que aponta para um estado intermediário onde eles existiriam. Afinal de contas, para se estar em algum lugar, necessário é primeiro existir. E se este lugar é um lugar diferenciado daquele para onde vão os ímpios, deve então haver alguma vantagem para a pessoa estar ali, o que pode dar indício de uma existência consciente.
Um testemunho assim deveria ser capaz de aniquilar qualquer dúvida sobre o estado intermediário. No entanto, ainda há espaço para discussão sobre a interpretação do verso em questão. Tomando-se como exemplo a Tradução do Novo Mundo, Bíblia traduzida e usada pelas Testemunhas de Jeová, que são aniquilacionistas. Este versículo é traduzido assim:
E ele lhe disse: "Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso." - Lucas 23:43, TNM
Como pode-se notar, o advérbio de tempo hoje está modificando o primeiro verbo, digo. Esta é a estratégia que aniquilacionistas normalmente adotam para interpretar o texto, já que o idioma original não possuía vírgulas para separar as orações. Assim, a ênfase de Jesus está sobre o ato de dizer.
Com duas versões possíveis para o texto, como então resolver qual a melhor tradução? Muitas pessoas têm respondido a esta última tradução, alegando que o verbo no presente juntamente com o advérbio hoje seria uma repetição desnecessária. No entanto, esta argumentação ignora que o idioma grego também pode se valer de repetições para enfatizar algo.
Por outro lado, acredito que uma análise do contexto e da sintaxe do texto são capazes de esclarecer quaisquer dúvidas sobre a tradução deste texto. Jesus estava respondendo um pedido do ladrão, então, vamos começar analisando este pedido, que Lucas registra como:
Lucas 23:42 Então disse: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. και ελεγεν ιησου μνησθητι μου οταν ελθης εις την βασιλειαν σου
A sintaxe desta frase nos revela detalhes muito interessantes, que nossas traduções não costumam trazer. Observem este pedido: O ladrão pede para que Jesus se lembre dele. A palavra usada aqui é μνησθητι, que é um imperativo aoristo passivo. Qual é a função sintática de um imperativo aoristo? Em sua gramática, Daniel Wallace nos revela que este imperativo aoristo pode ser colocado sob duas categorias: o ingressivo e o constativo. O ingressivo tem como foco, o início da ação. No verso acima, seria como se o ladrão pedisse para Jesus começasse a se lembrar dele. Por outro lado, o imperativo aoristo constantivo parece se encaixar muito melhor no contexto deste relato:
Essa é uma ordem solene ou categórica. A ênfase não está no "comece uma ação", nem "continue a agir". A ênfase, porém, está na solenidade e urgência da ação. Assim, "Eu solenemente conjuro-te a agir e faço-o agora!". Esse é o uso do aoristo em preceitos gerais. Embora o mesmo esteja aqui transgredindo o papel do tempo presente, ele acrescenta certo gosto. É como se o autor dissesse: "Faça disso sua prioridade número um". Como tal, o aoristo é frequentemente usado para ordenar uma ação que está em estado de processo. Nesse caso, tanto a solenidade quanto a urgência destacada são sua força.
Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 720, Editora EBR.
Mas Daniel Wallace explica isto de forma ainda melhor:
Em sumário sobre o imperativo aoristo constativo, pode ser dito como uma regra geral que essa ordem nada fala sobre o começar ou continuar uma ação. Ele basicamente tem a força de: "fazer de algo sua prioridade número um". Nosso conhecimento sobre o autor e o contexto nos ajudará a ver se os ouvintes têm feito qualquer prioridade quanto a isso, ou se eles o têm negligenciado completamente.
Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 479, Editora EBR.
Assim, o nosso ladrão não apenas pede para Jesus se lembrar dele, mas também pede que se lembre dele com prioridade, tamanha é a ansiedade deste homem por redenção.
Embora ele demonstrasse tanta certeza sobre o fato de Jesus ser o Messias e sobre Jesus entrar no reino celestial, ele não tem certeza sobre quando isto iria acontecer. Por isto ele utiliza também a construção οταν + verbo no subjuntivo. Daniel Wallace em outro lugar explica esta construção:
O subjuntivo frequentemente é usado depois de um advérbio temporal (ou preposição imprópria) com o sentido de até que (ex., ἕως, ἄχρι, μέχρι). Ou ainda mesmo, depois da conjunção temporal ὅταν com o sentido de quando quer que. Ele indica uma contingência futura da perspectiva do tempo do verbo principal.
Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 479, Editora EBR.
O pedido do ladrão portanto, seria como: "Jesus, quando quer que você entre em teu reino, lembre-se de mim em primeiro lugar!". Este é o pedido do ladrão, e a forma de se traduzir a resposta de Jesus deve levar este pedido em conta. Pois uma resposta que não o responde, estaria violando o contexto do relato.
Conhecendo portanto o pedido do ladrão, voltemos à resposta dada por Jesus. Sua resposta foi:
Lucas 23:43 Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. και ειπεν αυτω αμην σοι λεγω σημερον μετ εμου εση εν τω παραδεισω
Aqui, Jesus inicia sua resposta com a expressão αμην λεγω (Verdade, te digo). Sobre a expressão, o BDAG nos diz:
partícula asseverativa, verdadeiramente, sempre com λεγω, iniciando uma declaração solene mas usada somente por Jesus (Eu te asseguro que, Eu solenemente te digo). - BDAG, verbete αμην
Assim, esta era uma expressão solene usada apenas por Jesus. Digno de nota é que em nenhuma das instâncias que Jesus a usa, ela é modificada pelo advérbio σημερον (hoje), como pode ser visto em Mt 5:18; Mt 5:26; Mt 6:2; Mt 6:5; Mt 6:16; Mt 8:10; Mc 8:12; Mc 9:1; Lc 4:24; Lc 12:37 e outros.
F. Blass e A. Debrunner, em sua gramática, notam que:
A posição de nomes e advérbios
(1) A regra é que um atributivo adjetivo anarto geralmente segue seu substantivo. (2) Um advérbio que define um adjetivo (ou um verbo) também toma a segunda posição. (3) Mt particularmente tem o hábito de colocar advérbios depois de imperativos enquanto coloca-os antes de indicativos.
A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature (BDF), parágrafo 474.
Assim, o item 2 deste texto do BDF tem sido usado às vezes para se defender que σημερον deve modificar o verbo λεγω, que o antecede. O terceiro ponto, no entanto, mostra que isto não era uma regra, já que Mateus os coloca antes de infinitivos. Além disto, o BDF comentando o segundo ponto, nos diz:
(2) Mt 4:8 υψηλον λιαν, 2:16 εθυμωθη λιαν, cf. μέλας δεινῶς Aelian, NA 1.19, ἔρημος δεινῶς 4.27. Mas também λιαν (om. D) πρωι Mk 16:2, λιαν γαρ αντεστη, 2Ts 4:15.
Ou seja, o próprio BDF nos traz exemplos onde um advérbio de tempo precede o verbo que ele modifica. Que motivos Lucas teria para colocar o advérbio antes? O BDF, falando sobre ordem de palavras no grego, comenta:
472. A ordem de palavras no Grego e assim no NT é mais livre do que em línguas modernas. Há, contudo, certas tendências e hábitos (no NT especialmente em narrativas) que tem criado algo como uma ordem de palavras comum.
Mais adiante, o BDF comenta ainda:
(2) Estas posições, contudo, não são de qualquer forma mandatórias. Qualquer ênfase em um elemento da sentença faz aquele elemento ser movido para frente...
Assim, se o elemento precisa de destaque, é natural que ele seja movimentado para frente. Se a palavra hoje precisava de destaque, seria de se esperar que ela fosse movida para o início da declaração. A pergunta é: ela precisava de destaque? Agora voltamos ao contexto.
Observamos que o pedido do ladrão demonstrava urgência. Ele pedia algo como "Jesus, dê prioridade para isto", e Jesus respondia: "Não se preocupe: hoje mesmo você colherá os frutos de sua confissão".
Por outro lado, o ladrão expressou também uma dúvida sobre o tempo que Jesus poderia cumprir esta promessa. Ele disse algo como "Quando quer que você entre em seu reino", e a resposta de Jesus faz um grande contraste com esta dúvida: "Hoje estarás comigo no paraíso".
Certamente esta tradução se encaixa bem melhor no contexto, do que a ênfase sobre o momento da promessa. O ladrão não queria saber quando a promessa era feita, mas quando ela se cumpriria.
Há ainda alguma contra-argumentação contra esta tradução, mesmo que a forma "te digo hoje" não se encaixe no contexto. Costuma-se alegar que, se Lucas desejasse deixar claro que hoje modifica o verbo estarás, ele teria usado a conjunção οτι (que) antes de σημερον. Este argumento é irrelevante, pois da mesma forma, Lucas poderia usar οτι depois de σημερον.
Por outro lado, costuma-se também citar as palavras de Jesus ressurreto, no evangelho de João:
Disse-lhe Jesus: Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vai a meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. - João 20:17
O objetivo é demonstrar que Jesus não poderia ter ido ao paraíso naquele mesmo dia, pois depois, ao ressuscitar, ele teria dito que não tinha subido ao Pai ainda. Esta argumentação também é irrelevante, pois ela pressupõe que o paraíso mencionado por Jesus esteja localizado no céu, algo que não pode ser demonstrado através de textos bíblicos. Mesmo recorrendo-se à literatura judaica da época, que fala sobre a localização do paraíso, podemos perceber que o paraíso não é localizado onde Deus "habita". O segundo livro de Enoque, por exemplo, situa o paraíso no terceiro céu, sendo que Deus "habita" o sétimo céu (2 Enoque 3).
Conclusão
Acreditamos que o contexto é primordial na seleção de qual a melhor tradução deste texto. E como observamos aqui, a tradução que melhor preserva o contexto é a tradução que faz o advérbio hoje modificar o verbo estarás. Como Daniel B. Wallace disse em sua gramática, e que já citamos antes, "Nosso conhecimento sobre o autor e o contexto nos ajudará a ver se os ouvintes têm feito qualquer prioridade quanto a isso, ou se eles o têm negligenciado completamente". Quando Jesus diz que hoje o ladrão estaria no paraíso, Jesus estava demonstrando que realmente estava tratando aquele assunto com a mais alta prioridade. Não era apenas uma promessa feita naquele dia, mas era uma promessa cumprida naquele dia.
Comentários
Boa tarde
Tudo bem?
Eu tinha feito este comentário em um outro site respondendo a um mortalista e agora acrescentei alguns comentários.
A primeira questão que devemos entender em relação ao texto em questão é antes de mais nada como o ser humano é constituído de acordo com o contexto bíblico senão vejamos : De acordo com a crença mortalista o ser humano é fôlego de vida + corpo e isso formaria uma alma vivente porém aí nós já temos uma inconsistência pois um fôlego de vida inconsciente ao se juntar com o corpo inconsciente não pode formar um ser consciente i.e. uma alma vivente e uma outra inconsistência é que de acordo com a crença mortalista baseado na passagem de Eclesiastes 12:7 o fôlego volta para Deus ora mas esse mesmo fôlego age no corpo não fica parado ou estático mas existe atividade é como se fosse um vento e portanto se conclui que tal fôlego participa de forma ativa na vida daquele ser humano e tal fôlego não só age mas comanda o corpo então a atividade do fôlego de vida age sim nos pensamentos e ações do corpo e então como é possível um fôlego de vida que atuou na vida de um não–salvo voltar para Deus de igual maneira que o fôlego de vida de um justo volta ? Se o fôlego participou ativamente da vida de um ser que não viveu uma vida em Deus logo mesmo deveria ser condenado visto que sem a ação que provém dele o corpo não agiria. Os mortalistas quando argumentam que o ser humano é uma alma vivente não percebem que a visão mortalista nos apresenta uma soma vivente mas nunca uma alma vivente pois uma alma vivente é um ser em si que primeiro existe e vive e para isso necessariamente tem que existir um elemento espiritual consciente que defina de forma objetiva e direta o ser que é justamente a alma imortal e só lembrando que sem a alma imortal não existe ressurreição pois o corpo com suas características para ressuscitar precisa de um elemento espiritual com a capacidade necessária para levantar e sustentar o corpo e um fôlego de vida inconsciente não pode fazer isso. Existe na argumentação mortalista a questão da vírgula sendo assim analiso sobre tal questão a vírgula depois da palavra hoje e mesmo assim podemos crer na santa doutrina da imortalidade da alma na referida passagem ou seja no momento da fala de Jesus com o malfeitor ambos estavam vivos e a partir daquele momento para frente já era considerado futuro e quando Jesus assegura que ele estaria (no futuro próximo) no paraíso o futuro já era um futuro imediato e não um futuro distante além do mais a expectativa do ladrão na cruz era de ir em um futuro distante Jesus percebendo isso assegurou-lhe que seria naquele mesmo dia.
Uma outra questão importante na compreensão de Lucas 23:43 é a questão das solenidades pois a solenidade da declaração tem que estar em perfeita harmonia com a solenidade do ato em si então a declaração para que o ato daquele homem ir para o paraíso enquanto alma imortal deveria ser naquele mesmo dia para se harmonizar com a deçlaração ou seja uma solenidade plena e total no mesmo dia. A visão mortalista considerando só um aspecto da solenidade sendo uma solenidade só de declaração desarmoniza a passagem. A declaração de Jesus requer uma ação imediata para sustentar a questão da solenidade.
Abaixo analiso outras passagens:
Em Deuteronômio 6:6 – Nessa passagem Deus diz que hoje as palavras estariam no coração ou seja naquele mesmo momento da ordem de Deus e a partir daquele momento as palavras já estavam no coração do ser humano e não em um futuro distante. Repare a declaração de Deus e o ato no coração o ser humano na mesma hora. Agora imagina o se Deus desse essa ordem e o ser humano tivesse que esperar um futuro mas distante para acolher tais palavras.
Em Atos 20:26 – A declaração era de que já estava inocente do sangue de todos, repare que a palavra hoje entrou em harmonia com a ação já naquele mesmo instante e não em um futuro distante.
Em Deuteronômio 30:18 o raciocínio começa em Deuteronômio 30:16 onde Deus ordena aos homens a amem a Deus e sigam a Ele já naquele momento e que assim agindo no decorrer do tempo Deus os abençoassem a partir de uma declaração e uma to já naquele mesmo dia e no versículo 18 sendo naturalmente a continuação do 17 ou seja se aqueles homens tivessem se desviado já naquele momento então Deus diz que como consequência no futuro eles pereceriam.
então repare que a declaração e o ato de aceitar ou não a Palavra de Deus já aconteciam naquele mesmo momento e depois viriam as consequências.
Um grande abraço e muitas felicidades
Luiz
Posso garantir que o texto é meu. Inclusive ele é usado como referência em um artigo do Conhecereis a Verdade 4 meses antes da postagem do Itard.
Link: http://conhecereis-a-verdade.blogspot.com.br/2013/08/a-pontuacao-de-lucas-2343-e-o-codex.html
este texto é seu ou do Itard Camboim?
Aqui o texto está como escrito por você, mas no site do CACP, o autor aparece como Itard Camboim:
http://www.cacp.org.br/refutando-o-aniquilacionismo-e-o-sono-da-alma/
A alma morre, mas o espírito volta (??) para Deus?
Levando-se em conta que geralmente usa-se alma e espírito intercambialmente, afinal de contas, o espírito morre ou não?
E sobre o resto, o texto acima foi postado exatamente para demonstrar que a promessa para o ladrão seria cumprida no mesmo dia, não na ressurreição do último dia.
Jesus deu uma nova chance para ele, assim que se cumprir o texto de João 5;28,29 esse ex ladrão será levantado dentre os mortos!!!!
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