A autoridade e a razão constituíam o problema básico do escolasticismo. Qual era a autoridade medieval? Era a tradição substantiva sobre a qual se edificava toda a vida medieval. A autoridade residia, primeiramente, na tradição da igreja, expressa no reconhecimento dos pais da igreja, nos credos e concílios, e na Bíblia. Quando ouvimos hoje o termo "autoridade" pensamos logo num tirano, seja um pai, um rei, um ditador, ou mesmo um professor. Mas nos documentos medievais, a palavra auctoritas (autoridade) tinha outro sentido. Não era nem mesmo o papa, pois o seu autoritarismo só veio a aparecer mais tarde, pelo fim desse período. No início e no período áureo da Idade Média, a autoridade era a tradição viva. Perguntava-se: qual é a relação da razão com a tradição viva da igreja na qual se vivia? Não havia outra tradição. Essa tradição viva era-lhes tão natural como o ar que respiramos. Esta analogia pode nos ajudar a entender o sentido da tradição viva na Idade Média.
A tradição, no entanto, se compunha de diversos elementos, nem todos dizendo a mesma coisa. Examinando-os, era necessário fazer escolhas. A Idade Média enfrentou essa situação, primeiramente, no domínio das decisões práticas, representado na lei canônica. Essa lei era a base da vida medieval; o dogma era uma das leis canônicas e vinha daí a sua autoridade legal dentro da igreja. Necessidades práticas, então, criaram uma classe de pessoas devotadas a harmonizar o significado das leis canônicas existentes. O método empregado era dialético, conhecido como o método "do sim e do não". A razão era o instrumento desse trabalho. Ela combinava e harmonizava as sentenças dos pais e dos concílios, primeiramente na prática e logo em seguida no que se refere às declarações teológicas. A razão coletava, harmonizava e comentava as sentenças dos pais. Era a sua função principal. Quem desempenhou essa tarefa com reconhecido êxito foi Pedro Lombardo, cuja obra, Quatro Livros de Sentenças, tornou-se o manual do escolasticismo medieval. Essas Sentenças eram, por sua vez, comentadas por outros teólogos quando escreviam seus sistemas.
A razão também devia interpretar o sentido da tradição dada, expressa nas sentenças. Muito embora a fé sempre fosse pressuposta, seus conteúdos tinham que ser interpretados. Veio daí o moto: credo ut intelligam, creio para entender. Queria se dizer que a substância da fé era dada; podia-se participar nela. Não havia na Idade Média a "vontade de crer". O credo era dado como era dada a natureza. Da mesma forma, a razão apenas interpretava a tradição dada; não criava a tradição. Essa analogia pode nos ajudar a entender melhor a Idade Média.
O próximo passo foi dado, menos especulativamente e com mais cautela, por pensadores que levavam a sério Aristóteles, na sua elaboração teológica, como demonstra especialmente, Tomás de Aquino. Achavam que a razão era adequada para interpretar a autoridade. Na verdade, a razão jamais se opõe à autoridade; a tradição viva pode ser interpretada em termos racionais. A razão não precisa ser destruída para interpretar o significado da tradição viva. Esta ainda é até hoje a posição tomista.
O último passo foi a separação entre razão e autoridade. Duns Escoto e Guilherme de Ockham, o nominalista, entendiam que a razão não se prestava para interpretar a autoridade nem a tradição viva, nem mesmo para expressá-las. O nominalismo posterior diria isto, claramente. Entretanto, se a razão não pode interpretar a tradição, a tradição se transforma em autoridade de modo bem diferente; passa a ser a autoridade mandatória a exigir submissão, mesmo se não for entendida. É o que chamamos de "positivismo". A tradição é dada positivamente: está aí e a vemos; aceitamo-la e nos submetemos a ela do modo como nos é dada pela igreja. A razão não tem capacidade de mostrar o sentido da tradição; só pode mostrar as diferentes possibilidades derivadas das decisões da igreja e da tradição viva. A razão pode chegar a probabilidades e a improbabilidades, mas nunca a realidades. Não pode dizer como as coisas deveriam ser. Isso depende da vontade de Deus. A vontade de Deus é irracional e dada. É dada na natureza. Precisamos, pois, de certo empirismo para descobrir como são as leis naturais. Não estamos no centro da natureza. Relacionamo-nos com as ordens da igreja, com a lei canônica, de modo que é a essas decisões que nos submetemos positivamente; devemos aceitá-las como leis positivas, pois não as podemos entender em termos racionais.
A autoridade da igreja e, até certo ponto, a razão terminaram com o advento do protestantismo. A razão voltou a ser completamente elaborada e se tornou criativa na Renascença. Na Reforma, a tradição se transformou em fé pessoal. Mas a Contra-Reforma tentou manter a razão prisioneira da tradição. Só que essa tradição já não era a tradição viva, mas formulada e identificada com a autoridade do papa. São fatos extremamente importantes para nós ainda hoje. Enfrentamos o problema da tradição viva e de sua confusão com autoridade. Trata-se de um erro. A autoridade pode ser natural e factual, sem nos partir internamente, destruindo a nossa autonomia e sem nos sujeitar à lei externa da heteronomia. No primeiro momento da Idade Média, a autoridade era natural, por assim dizer, como é natural a nossa relação com a natureza. Já no final da Idade Média, a situação mudara. Surgiu, então, certo conceito de autoridade contra o qual devemos lutar, porque exige a sujeição das diversas tradições a uma única tradição. Hoje em dia, os ditadores chegam ao extremo de excluir todas as outras tradições. As assim chamadas "cortinas de ferro", que muitas vezes construímos ao não admitir livros do Oriente etc., são tentativas de manter as pessoas dentro de uma só tradição impedindo-as de entrar em contato com outras tradições. Todos os sistemas autoritários sabem que nada é mais perigoso para uma dada tradição do que o contato com outras tradições. Os indivíduos, assim, ficariam livres para decidir em face dessas outras tradições. O método da "cortina de ferro" não era necessário na Idade Média porque não havia outra tradição; vivia-se na tradição medieval como se vive naturalmente na natureza.
(TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2000, p. 148-150)
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